Currículo Vitae

Currículo Vitae

Poeta evadido e obstinado

Impetuoso e desassossegado

Poeta de quase tudo demisso

– Mas acima de tudo insubmisso

dinismoura

terça-feira, 4 de março de 2014

Jamais acreditei em horóscopos:
para o mesmo signo
dezenas de previsões
 – e todas erram infalivelmente.
Porém
num ponto
todos os horóscopos
concordam em absoluto
e acertam incontestavelmente:
vamos todos morrer.


dinismoura  
Os naufrágios do amor exigem
medidas drásticas e extraordinárias.

Depois de dezenas de requerimentos,
o mesmo número de insistências,
muita perseverança e algumas rezas,
eis que finalmente surgiu uma vaga.
Foi ontem à tarde.
Durante um bom par de horas
estive à conversa com Santo António
– A ver se me arranja uma moçoila,
uma moçoila carinhosa, bonita, fiel.

A agenda a transbordar,
imensos pedidos, permanentes quefazeres.
– Por tais e quejandos motivos, vi-me forçado
a acrescentar mais três dias ao mês de Fevereiro:
até ao dia 31 não terei mãos a medir.
Ainda pensei que esse assunto das redes socais
contribuísse para aliviar-me a carga – mas qual quê?
A faina duplicou, triplicando-me destarte as preocupações.

Depois em gestos medidos,
numa expressividade parenética:
logo que sobeje tempo
prometo tratar disso.
Como estava a dizer-lhe,
há depois aqueles peixes mais ariscos.  

Eu bem fui insistindo na rogatória,
falei na cor dos olhos, que os queria
castanhos, como os da minha mãe.
Gostaria dela com cabelo comprido,
pele branca, sorriso de flor de cerejeira,
pernas de Vénus de Botticelli,
mas o canonizado tagarela  passou o resto
da tarde a discorrer caudalosamente sobre
peixes, anzóis e canas de pesca
 – e eu a ver navios.


dinismoura

O pintainho preto


Triste, porque discriminado e aviltado
Pelo chefe da capoeira, um galo
Preconceituoso e empolado,
O pintainho preto bica sua mãe com questões.
Tenciona saber por que a sua preta penugem
É motivo de tais depreciações.
Esta, cheia de penas, cacareja consolos:
– Não faças caso, meu lindo pintainho,
São apenas tolices de um maluquinho.
Além de não ter cabeça, é racista:
O malvado só pensa com a crista.


dinismoura
                                                                                                     (A Filomena de Jesus, minha avó)

A noite percorrendo o seu vasto, esplêndido e milenar itinerário,
liturgia exuberante do cosmos, e a minha avó,
no interior da sua pequenina casa, deitada na sua pequena cama,
segurando nas mãos um confidente, aficionado e puído terço,
reza devotamente a Deus e pede-lhe por todos os seus.
Com as suas pequenas mãos, duas pequenas rosas, santas,
a minha avó, clareira de fé, pega no terço com a mesma ternura
com que tantas vezes ao colo pegou as filhas, os netos e as vidas deles,
e roga, reza, celebra caminhos inexplicáveis, insondáveis.
Beija o crucifixo. O céu benze-se, ajoelha-se. Acendidas, as palavras ascendem.
Minha admiração perante estes actos sagrados.
No interior do seu pequeno quarto, rodeada de uma missa de silêncios,
a minha avó, comungando uma luz impercetível,
murmureja, como a alma das capelas, pai-nossos, ave-marias, glórias
e pede a Deus que zele por todos os seus e guarde a alma dos que já partiram.
Nada pede para si. Nada.

Que grandeza incomensurável. 



dinismoura

Dizer Poesia de 04 Fev 2014 - RTP Play - RTP



A minha poesia na RDP Internacional.
Dizer Poesia de 04 Fev 2014 - RTP Play - RTP
Perdoai-lhes, Senhor,
porque eles não sabem
que o sonho comanda a vida. 

dinismoura


Que horas são?
Faltam cinco versos
para o fim do mundo.

dinismoura

sábado, 1 de fevereiro de 2014

O meu poema "Atestado Médico", no "Canal de Poesia", o fabuloso blogue de gil t. sousa

 http://canaldepoesia.blogspot.com/2013/08/dinis-moura-atestado-medico.html


dinis moura / atestado médico




Cursei medicina, aprofundei a anatomia,
Especializei-me em fisiologia.
Depois, meu adorado organismo
Composto de devaneios de primavera, conheci-te.
Deslumbrou-se o meu encéfalo,
O meu sistema endócrino desregulou-se de todo.
Resultado: tu bem sabes:
apaixonei-me por ti, desmedidamente,
O que mostra perfeitamente a medida
Daquilo que me é impossível medir.
Só para teres uma ideia, a admirável pigmentação
Das tuas íris de tal modo contaminou as minhas,
Que durante cinco dias tudo, tudo em meu redor
Ganhou tons de pôr de sol outonal.
Um daltonismo esplêndido.
Entretanto o meu coração, órgão vital
Com as suas duas válvulas, os seus dois ventrículos
E as suas duas aurículas,
Passou a contrair e a distender os seus compartimentos
De maneira mirífica, mais intensa, mais exaltada.
Nunca este músculo me tangeu assim tão irrequieto.
Perplexo, decidi analisar o inesperado fenómeno.
Não muito tempo depois, esbarrei,
Espanto de fogueira, com uma estranheza anatómica:
Ao contrário do que a medicina me ensinou,
Revelaram-me as minhas examinações, pasmei,
Que possuo um órgão vital a mais. Não quis crer.
Decidi reexaminar. Tal-qualmente o mesmo resultado:
No interior da minha cavidade torácica,
Os meus mestres não iriam acreditar,
Com um outro coração me deparei : o teu.
O teu, o teu colorido coração, meu adorado
organismo composto de devaneios de primavera.
Nas minhas artérias e nas minhas veias
Circula também o teu sangue,
Líquido vermelho e viscoso que nutre
Esse extraordinário órgão
Segregante de espantosas e eufóricas auroras,
Tão vital para mim quanto
Os demais órgãos do corpo humano.
Falo obviamente do amor,
Um órgão totalmente alheio à medicina.
De acordo com o mencionado,
Mais o quadro clínico apresentado,
Atesto que sou portador
De uma prodigiosa síndrome,
Vendaval vivificante, confluência de encantamentos,
O que me confere uma capacidade permanecente
De manobrar o leme da burocracia das estrelas,
As rédeas do canto das aves, a alavanca das ambições das flores.



dinis moura

Funeral


O meu tio levou um requintado fato preto
feito por medida, tecido italiano, caríssimo.
O meu irmão, que detesta gravatas pretas,
colocou uma, porém, talvez para dissimulá-la,
vestiu uma camisa preta.
As minha primas, umas de calças, outras de vestido,
outras de saia, foram todas vestidas de preto.
A minha tia, sempre exagerada,
levou uma minissaia quase curtíssima e uma camisola
exageradamente decotada, tudo da mesma cor, tudo preto.
A minha avó levou um vestido e um xaile da cor
que vem ostentando ininterruptamente há dez anos:
a cor que a morte do meu avô sepultou em todas
as suas roupas: a cor do luto – o preto.
O médico foi de preto,
o advogado também.
Foram alguns amigos, alguns conhecidos,
todos eles vestidos de preto.
De preto foi também a única pessoa
que não conheci.

Só eu chorei.


dinismoura

terça-feira, 28 de janeiro de 2014