Currículo Vitae

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Poeta evadido e obstinado

Impetuoso e desassossegado

Poeta de quase tudo demisso

– Mas acima de tudo insubmisso

dinismoura

sábado, 1 de fevereiro de 2014

O meu poema "Atestado Médico", no "Canal de Poesia", o fabuloso blogue de gil t. sousa

 http://canaldepoesia.blogspot.com/2013/08/dinis-moura-atestado-medico.html


dinis moura / atestado médico




Cursei medicina, aprofundei a anatomia,
Especializei-me em fisiologia.
Depois, meu adorado organismo
Composto de devaneios de primavera, conheci-te.
Deslumbrou-se o meu encéfalo,
O meu sistema endócrino desregulou-se de todo.
Resultado: tu bem sabes:
apaixonei-me por ti, desmedidamente,
O que mostra perfeitamente a medida
Daquilo que me é impossível medir.
Só para teres uma ideia, a admirável pigmentação
Das tuas íris de tal modo contaminou as minhas,
Que durante cinco dias tudo, tudo em meu redor
Ganhou tons de pôr de sol outonal.
Um daltonismo esplêndido.
Entretanto o meu coração, órgão vital
Com as suas duas válvulas, os seus dois ventrículos
E as suas duas aurículas,
Passou a contrair e a distender os seus compartimentos
De maneira mirífica, mais intensa, mais exaltada.
Nunca este músculo me tangeu assim tão irrequieto.
Perplexo, decidi analisar o inesperado fenómeno.
Não muito tempo depois, esbarrei,
Espanto de fogueira, com uma estranheza anatómica:
Ao contrário do que a medicina me ensinou,
Revelaram-me as minhas examinações, pasmei,
Que possuo um órgão vital a mais. Não quis crer.
Decidi reexaminar. Tal-qualmente o mesmo resultado:
No interior da minha cavidade torácica,
Os meus mestres não iriam acreditar,
Com um outro coração me deparei : o teu.
O teu, o teu colorido coração, meu adorado
organismo composto de devaneios de primavera.
Nas minhas artérias e nas minhas veias
Circula também o teu sangue,
Líquido vermelho e viscoso que nutre
Esse extraordinário órgão
Segregante de espantosas e eufóricas auroras,
Tão vital para mim quanto
Os demais órgãos do corpo humano.
Falo obviamente do amor,
Um órgão totalmente alheio à medicina.
De acordo com o mencionado,
Mais o quadro clínico apresentado,
Atesto que sou portador
De uma prodigiosa síndrome,
Vendaval vivificante, confluência de encantamentos,
O que me confere uma capacidade permanecente
De manobrar o leme da burocracia das estrelas,
As rédeas do canto das aves, a alavanca das ambições das flores.



dinis moura

Funeral


O meu tio levou um requintado fato preto
feito por medida, tecido italiano, caríssimo.
O meu irmão, que detesta gravatas pretas,
colocou uma, porém, talvez para dissimulá-la,
vestiu uma camisa preta.
As minha primas, umas de calças, outras de vestido,
outras de saia, foram todas vestidas de preto.
A minha tia, sempre exagerada,
levou uma minissaia quase curtíssima e uma camisola
exageradamente decotada, tudo da mesma cor, tudo preto.
A minha avó levou um vestido e um xaile da cor
que vem ostentando ininterruptamente há dez anos:
a cor que a morte do meu avô sepultou em todas
as suas roupas: a cor do luto – o preto.
O médico foi de preto,
o advogado também.
Foram alguns amigos, alguns conhecidos,
todos eles vestidos de preto.
De preto foi também a única pessoa
que não conheci.

Só eu chorei.


dinismoura